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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Nos subterrâneos da Cultura: Lilith - a Lua Negra e os arquétipos do feminino ( última parte)


"'Dirige-te para cá decantado Odisseu, grande glória dos aqueus; detém o teu barco para ouvir-nos cantar'" 
(Homero, Odisséia)

Relata o herói mítico - Ulisses -, acerca do belo canto das sereias. Seu coração desejava ouvi-las. Contudo, a astúcia  garantiu que seus pedidos para que os companheiros o soltassem das cordas não fossem atendidos: antes, todos tiveram protegidos os ouvidos com cera e, desafiando o poder sedutor das criaturas, preso ao mastro, deu-se ao prazer dessa inesquecível experiência. Distante do perigo, os homens livraram-se da cera e, ele das cordas...(01)

Os instintos de sobrevivência e o de conservação humanos têm origens comuns no medo daquilo que se revela desconhecido, imprevisível, inexplicável, como a destruição e a morte.  Do estado de tensão e angústia é gerado uma espécie de autodefesa egocêntrica em que se elege a Outro diferente, como um ser hostil, perigoso, negativo, que deve ser dominado (02) ou destruído. Num artigo magnífico, Olgária Matos, partindo de um trabalho de Adorno e Horkheimer, nos forneceu um precioso material para o entendimento desse trecho do mito e do nascimento da razão. A autora convergiu com as ideias apresentadas pelos autores supra citados, de que "tanto a mitologia quanto o iluminismo filosófico e científico (sécs. XVII e XVIII) encontraram suas raízes nas necessidades básicas: sobrevivência, auto-conservação e medo"(03). As aventuras de Ulisses foram tomadas como mito exemplar para explicar tal ponto de confluência:
" A Odisséia revela os poderes celebrados no poema, suas relações de dominação e a exploração; mostra como, desde o início do pensamento ocidental, a luta pela auto-conservação e autonomia se vinculou ao sacrifício, à repressão, à renúncia (04)".
Ulisses luta contra si para vencer as sereias que, nada mais são, do que a representação dos seus desejos ou instintos naturais. Expondo de um outro modo, utilizando-se da razão, ele condena o desejo porque as paixões que dele emanam perturbam a ordem do pensamento racional (05).

" A passagem da natureza para a cultura se faz pela prática da renúncia (06)."

Logra-se a natureza e reforça- se o eu como norma para auto conservação. 
Ao penetrar nos segredos da natureza para explicá-la racionalmente, o homem tem que exercer constante vigilância sobre si(07).

" A viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, da auto-repressão ao auto desenvolvimento. O eu homérico que distingue as forças obscuras e a civilização expressa o medo original da humanidade diante do outro. O ato sacrificial repetido organiza a identidade do sujeito com as forças da natureza, a fim de lhe permitir purificar-se da natureza interior da própria humanidade. A substituição que ocorre no sacrifício não deve ser separada da divinização do sacrificado (08)..."

A parte da humanidade masculina rompeu com o natural e se presenteou com o poder. Para mantê-lo era preciso agir racionalmente e como a racionalidade exige regras para estabelecer o auto controle, de acordo com Matos, somente o astucioso poderia conhecer e sobreviver aos riscos(09).

" As sereias simbolizam muito do que nas mulheres é atraente e temível para os homens (10)."

A Melancolia de Ulisses subsiste de uma renúncia cujo objeto continua sendo desejado e que cuja privação, graças a repressão de seus instintos, o faz simultaneamente triunfar e fracassar: torna-se racional e melancólico, pois, a renúncia convertida em autonomia - o auto sacrifício da natureza interior a fim de manter o controle das coisas - traz uma perda para o próprio eu (11).
O mito de Ulisses nos é importante porque nos fala de uma transição. Quanto mais o homem se racionalizava, mais se afastava de tudo que lhe parecia ligado à natureza. A mulher, como parte evidente desse domínio (12) também passou por esse raciocínio tornando-se um peso, um problema que emperrava o desenvolvimento da história masculina, entretanto, necessária. Desprezada e inferiorizada, o estigma transcendeu tempos e espaços apartando as mulheres "respeitáveis" do mundo social. Atitude, inteligência, proposição: coisas de homem. Submissão, aceitação, silêncio... claro, coisas de mulher. Mulheres com comportamentos diferentes sempre foram mal faladas. Liliths insubmissas à ação egocêntrica do outro -  Antes uma atitude política do que meramente sexual (13).

...Adão e o Criador não poderiam admitir a audácia, a perda do controle sobre a primeira mulher. 

A Lilith hebraica transfigurada nas diversas figuras que a seguiriam dividiu a imagem com outras típicas faces pecadoras. Estereótipos. Das mais horripilantes às mais magníficas e traidoras "bruxas", o sangue ferveu nas fogueiras e não se  purificou pecados... aqueles que as condenaram pela diferença permaneceram vivos, queimando dentro do inferno de suas próprias consciências...

... e assim a história continua, revelada pelo número crescente de espancadores e assassinos, invocando "ciúmes", "honra" e "posse".

Notas
(01) Homero. Odisséia, p.145;
(02) Matos. Olgária, p.142;
(03) Ibid,p.141;
(04) Ibid,p. 147;
(05) Ibid,p. 142;
(06) Ibid,p. 144;
(07) Ibid,p. 147,148;
(08) Ibid,p. 145 - grifo meu;
(09) Ibid,p. 143;
(10) Ibid,p. 144;
(11) Ibid,p. 149,153,154;
(12) A menstruação, gravidez, enfim, os ciclos marcados que enfrenta no decorrer da vida.
(13) "Por que devo deitar-me embaixo de ti (...)"  - citado em SICUTERI, p.35


Bibliografia

MATOS. Olgária. A melancolia de Ulisses: a dialética do Iluminismo e o canto das    sereias. In: Os Sentidos da Paixão, Funarte, Cia das Letras, SP, 1987.

SICUTERI. Roberto. Lilith: A Lua Negra. Editora Paz e Terra. Série Psicologia, R.J., 1986.


Feliz dia das Bruxas para todas aquelas que têm coragem 
de começar de novo...

E um grande beijo para os homens que não têm medo do Lado Negro da Lua.


4 comentários:

Leovi disse...

Magnífico y muy interesante tu artículo. El miedo en principio es un mecanismo de defensa ante lo desconocido para prevenir una potencial peligrosidad. Pero políticos, religiosos, dictadores, economistas,... siempre lo han utilizado como un aliado para manipular a las masas.

Engenholiterarte disse...

Perfeito, Leovi!

Penélope disse...

Pois sim, minha amiga... postei ainda ontem um texto, ainda que textinho, que retrata exatamente as preservações que temos que fazer para sobrevivermos, nossas formas de nos defender com unhas e dentes para superar a realidade sem muitos arranhões.
Venho aqui e vejo esta beleza que gosto tanto!
Bravo!!!
Abraços

Pedro Luso de Carvalho disse...

Fênix,

Aí nos deparamos, mais uma vez, com mais uma prova inconteste de que a obra de Homero, Odisséia, jamais morrerá. (A sua postagem é uam dessas provas.)

Abraços,
Pedro

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