"'Dirige-te para cá decantado Odisseu, grande glória dos aqueus; detém o teu barco para ouvir-nos cantar'"
(Homero, Odisséia)
Relata o herói mítico - Ulisses -, acerca do belo canto das sereias. Seu coração desejava ouvi-las. Contudo, a astúcia garantiu que seus pedidos para que os companheiros o soltassem das cordas não fossem atendidos: antes, todos tiveram protegidos os ouvidos com cera e, desafiando o poder sedutor das criaturas, preso ao mastro, deu-se ao prazer dessa inesquecível experiência. Distante do perigo, os homens livraram-se da cera e, ele das cordas...(01)
Os instintos de sobrevivência e o de conservação humanos têm origens comuns no medo daquilo que se revela desconhecido, imprevisível, inexplicável, como a destruição e a morte. Do estado de tensão e angústia é gerado uma espécie de autodefesa egocêntrica em que se elege a Outro diferente, como um ser hostil, perigoso, negativo, que deve ser dominado (02) ou destruído. Num artigo magnífico, Olgária Matos, partindo de um trabalho de Adorno e Horkheimer, nos forneceu um precioso material para o entendimento desse trecho do mito e do nascimento da razão. A autora convergiu com as ideias apresentadas pelos autores supra citados, de que "tanto a mitologia quanto o iluminismo filosófico e científico (sécs. XVII e XVIII) encontraram suas raízes nas necessidades básicas: sobrevivência, auto-conservação e medo"(03). As aventuras de Ulisses foram tomadas como mito exemplar para explicar tal ponto de confluência:
" A Odisséia revela os poderes celebrados no poema, suas relações de dominação e a exploração; mostra como, desde o início do pensamento ocidental, a luta pela auto-conservação e autonomia se vinculou ao sacrifício, à repressão, à renúncia (04)".
Ulisses luta contra si para vencer as sereias que, nada mais são, do que a representação dos seus desejos ou instintos naturais. Expondo de um outro modo, utilizando-se da razão, ele condena o desejo porque as paixões que dele emanam perturbam a ordem do pensamento racional (05).
" A passagem da natureza para a cultura se faz pela prática da renúncia (06)."
Logra-se a natureza e reforça- se o eu como norma para auto conservação.
Ao penetrar nos segredos da natureza para explicá-la racionalmente, o homem tem que exercer constante vigilância sobre si(07).
" A viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, da auto-repressão ao auto desenvolvimento. O eu homérico que distingue as forças obscuras e a civilização expressa o medo original da humanidade diante do outro. O ato sacrificial repetido organiza a identidade do sujeito com as forças da natureza, a fim de lhe permitir purificar-se da natureza interior da própria humanidade. A substituição que ocorre no sacrifício não deve ser separada da divinização do sacrificado (08)..."
A parte da humanidade masculina rompeu com o natural e se presenteou com o poder. Para mantê-lo era preciso agir racionalmente e como a racionalidade exige regras para estabelecer o auto controle, de acordo com Matos, somente o astucioso poderia conhecer e sobreviver aos riscos(09).
" As sereias simbolizam muito do que nas mulheres é atraente e temível para os homens (10)."
A Melancolia de Ulisses subsiste de uma renúncia cujo objeto continua sendo desejado e que cuja privação, graças a repressão de seus instintos, o faz simultaneamente triunfar e fracassar: torna-se racional e melancólico, pois, a renúncia convertida em autonomia - o auto sacrifício da natureza interior a fim de manter o controle das coisas - traz uma perda para o próprio eu (11).
O mito de Ulisses nos é importante porque nos fala de uma transição. Quanto mais o homem se racionalizava, mais se afastava de tudo que lhe parecia ligado à natureza. A mulher, como parte evidente desse domínio (12) também passou por esse raciocínio tornando-se um peso, um problema que emperrava o desenvolvimento da história masculina, entretanto, necessária. Desprezada e inferiorizada, o estigma transcendeu tempos e espaços apartando as mulheres "respeitáveis" do mundo social. Atitude, inteligência, proposição: coisas de homem. Submissão, aceitação, silêncio... claro, coisas de mulher. Mulheres com comportamentos diferentes sempre foram mal faladas. Liliths insubmissas à ação egocêntrica do outro - Antes uma atitude política do que meramente sexual (13).
...Adão e o Criador não poderiam admitir a audácia, a perda do controle sobre a primeira mulher.
A Lilith hebraica transfigurada nas diversas figuras que a seguiriam dividiu a imagem com outras típicas faces pecadoras. Estereótipos. Das mais horripilantes às mais magníficas e traidoras "bruxas", o sangue ferveu nas fogueiras e não se purificou pecados... aqueles que as condenaram pela diferença permaneceram vivos, queimando dentro do inferno de suas próprias consciências...
... e assim a história continua, revelada pelo número crescente de espancadores e assassinos, invocando "ciúmes", "honra" e "posse".
Notas
(01) Homero. Odisséia, p.145;
(02) Matos. Olgária, p.142;
(03) Ibid,p.141;
(04) Ibid,p. 147;
(05) Ibid,p. 142;
(06) Ibid,p. 144;
(07) Ibid,p. 147,148;
(08) Ibid,p. 145 - grifo meu;
(09) Ibid,p. 143;
(10) Ibid,p. 144;
(11) Ibid,p. 149,153,154;
(12) A menstruação, gravidez, enfim, os ciclos marcados que enfrenta no decorrer da vida.
(13) "Por que devo deitar-me embaixo de ti (...)" - citado em SICUTERI, p.35
Bibliografia
SICUTERI. Roberto. Lilith: A Lua Negra. Editora Paz e Terra. Série Psicologia, R.J., 1986.
Feliz dia das Bruxas para todas aquelas que têm coragem
de começar de novo...
E um grande beijo para os homens que não têm medo do Lado Negro da Lua.